quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

a dedo



entre
datas
entre
linhas
entre
laços 
entre
nós

na
falsa 
impressão 

não disse
nenhuma
palavra

no último
instante 
confesso

escreveu

"tudo"



quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Suíte para violoncelo

Às vezes um som desperta uma espécie de silêncio.
... ... ... ... ...
Música para pensar em nós
Música para desatar os nós
... ... ... ... ...
Com ou sem dó.

sexta-feira, 3 de maio de 2013

A um jovem poeta



o poeta quase homônimo
vende sonhos
sinais

semeia versos
rega-os

nem cobra
sorri
assente
e vai

na saída
sutil
agradece
"a minha paz"

nem sabe o menino:
refleti o seu haikai.






R.B. 02/05/2013

segunda-feira, 29 de abril de 2013

Valsinha


Ela no sofá, ele no portão.
Ele entra, vai até a cozinha, ela se levanta e vai varrer o quintal.
O silêncio continua há anos, desde que o cão morreu.  O abacateiro já não existe. Nem a figueira, nem o jardim, nem o pé de romã. Restam sombras e umidades nas paredes. Apenas algumas hortênsias teimam em florescer escandalosamente em frente à porta nos dias incertos de abril.
Ninguém esperava, mas aconteceu...  entre o barulho  da panela de pressão e o olhar fixo  em um não lugar, o tempo passou. Quando voltou ao mundo, o susto: lá estava ele, parado, no mesmo cômodo, com uma flor na mão. A camisa puída, rasgada e suja, dava-lhe o ar de alguém que foi abandonado.
Desligou o fogão. Terminou de secar as mãos no pano de prato, mas o olhar não se sustentou em nenhum canto da casa. Havia desaprendido a ser notada.
Passos vagarosos, pesados de tempo, vieram em sua direção. A mão grossa, rugosa, ajeitou a flor atrás da sua orelha sem dizer palavra. Havia música e mistério entre os corações cansados, algo que esboçou uma dança vigorosa e lenta entre um cômodo e outro.
Quanto tempo? Uma eternidade? Talvez duas...
Depois as mãos se soltaram, ele foi para janela e ela colheu hortênsias para pôr num vaso. 

R.B.

sexta-feira, 19 de abril de 2013

Evidências



A  Marcos Suguiura,
(Porque há momentos na vida em que não há saída: é irresistível revirar a gaveta...)



Não me faltam conflitos nas noites de terça, principalmente, por estas noites premeditarem meu encontro com o Marcos. Algo me diz que todos os grilos são primos nas confusões de uma terça. Acresce uma briga com o chefe, a mordida do imposto e o desgosto de um “ex”.  Cansaço, memória, trabalho... Por causa do ritmo atordoado desde o final de semana, geralmente chego exausta e mal tenho a lembrança de como abri a porta ou de como acendi as luzes da sala. Talvez eu me lembre um pouco da água do banho... A esponja e a espuma com cheiro do sabonete novo. Tudo é pressa de terminar o dia... – fechar os olhos e estar na minha cama, quieta. Por isso, um dia desses, mal sequei os cabelos. Apenas apaguei tudo e deitei.
Quem não conhece o turbilhão ao travesseiro depois de um dia cheio e confuso assim? A gente quase levita – ou afunda! – na cama querendo morrer de dormir. Pois é... mas eu não durmo. Tenho uma insônia monstruosa que me obriga sempre a tomar um comprimidinho azul antes de apagar a luz. Aconteceu então que, nesta noite, um tempo depois da minha dose de céu e exatamente no instante em que meus olhos quase se renderiam ao sono, ouvi um silêncio estranho. Um silêncio distinto daquele no qual eu e minhas plantinhas encontramos repouso. Havia um silêncio de um outro – e foi um susto, ouvi-lo pensar.
Abri os olhos e vi o quarto em escuro azulado. É claro que meu medo infantil vigiava a porta do guarda-roupa. Fechada. Estou louca? Não. Não há nada ali... porém lá se foi meu descanso. Assim, tornei a pensar no Marcos e na sessão de amanhã. “Mais uma vez ele vai ouvir minhas lamúrias e mais uma vez vou pensar que nem eu mesma tenho tanta paciência comigo”. De qualquer forma, chegar à terapia com esse papo de “senti que tinha alguém no meu quarto” já será demais.  Pensei comigo: “pára com isso, Rita!”.
Mas que susto! Ouvi de novo! Dessa vez, um quase suspiro...  alguém respira embaixo da minha cama. Eu sei.
Apenas para conferir – e por medo! – contenho meu próprio ar. Agora é certeza... Há alguém aqui. Que droga! Tenho muito medo – medo físico em suor frio. Até meu coração confuso entre o remédio e o susto, tropeça cambaleante dentro de mim.  Devagar tomo o lençol e cubro a cabeça como fazia quando criança. O grande problema é que hoje já sei – eu não o vejo, mas o outro pode me ver.
Sinto inclusive seu susto. Meu medo denunciou que o percebo.
Em pedra mal respiro. O certo é que de novo quase espero morrer.
Um barulhinho, um estalo, estronda nosso mal estar. Quem estaria ali...? A hipótese é tão absurda que chego a renegar a idéia de um intruso. Como entraria?  Argumento comigo... “deve ser um bichinho”... Só uma barata vinda com o cheiro da chuva... Até um rato – com todo o medo e nojo do mundo – eu suporto pensar... mas é grande demais a presença que escuto através do colchão. Percebo um ajeitar-se lentamente. Um estralinho de articulações. Afinal, a cama é baixa... e não sei como essa pessoa conseguiu se encaixar.
Será um ladrão? Pela fresta do lençol tento espiar minha escrivaninha... o computador esta lá. A carteira parece no lugar... a gaveta onde guardo meus documentos está impedida por uma pilha de livros sobre a cadeira e, portanto, parece intacta. Sim, meus olhos pesam, pesam apesar da tensão... Mas estão acostumados ao escuro.    
 Não consigo sequer me mexer. Não tenho coragem nem força suficiente para falar. Até meu pensamento tem medo de sussurrar e ser ouvido. Nunca me vi tão impotente. Digamos que até então o caso me amedrontava, mas era uma simples hipótese delirante. Eu afirmava e duvidava de minha própria percepção. De fato eu temia uma violência, um susto, um ataque... mas também ignorava em que tipo de vulnerabilidade eu estava exposta ali. Foi quando me lembrei do caderno - uma espécie de diário que escrevo toda noite e deixo no chão,  ao lado da cama!
Nessa hora sim, um desespero. A necessidade intensa de esticar o braço e tomá-lo de volta. Rapidamente. Se meu corpo dopado não se mexia, minha alma agitada e sonolenta sabia estar escrita naquele caderno.
O delírio do azul me rendia... cheguei a ouvir na minha mente uma voz conhecida... O Marcos dizia “calma. Tudo vai ficar bem.” Incrível como até em sonho a presença desse cara me conforta. Depois de tudo o que passei, ele é o único em quem confio. Vocês não sabem como ele é  sensível! Acreditam que toda quarta pela manhã ele quase adivinha o que se passa em mim?! Não sei como ele faz isso. Parece que lê minha alma... Não sei...
Só sei que naquela noite de terça, apesar de uma luz estranha sob a cama... um brilho que não parecia vir da janela... apesar de tudo, com meu remedinho, eu dormi.

São Paulo, 09 de setembro de 2008.
R. B.




sexta-feira, 8 de março de 2013

um passo




um passo

a Felipe Macedo Caldas

até a porta
espaço vago
entre estar presente
e ser lembrança

sorriso
e lágrima
eterno abraço

cartão café
hora extra
em sonora insônia
e desabafo

um passo

na praia
aceno
e sinto o chão
romper-se líquido

enorme e surdo
cansaço

o mar aumenta
inunda o porto
aperta o peito
alinha o olhar
além


R. B., 08/03/2013

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

Razão


José da Silva desde criança aprendeu com os pais que estudar seria sua única chance de ascensão social. Por isso, dedicou sua juventude aos estudos, em sacrifícios e privações, até fazer parte da ínfima parcela de 5% da população mundial com diploma universitário.
Inteligente, sensível e ciente dos valores envolvidos em tal escolha, ingressou em uma carreira da área de Ciências Humanas, com ênfase em Educação – onde os salários costumam ser em média 61% menores do que os de outros campos de alta responsabilidade.
Seu cotidiano era preenchido por 44 horas semanais registradas em carteira, embora pelo menos outras 18 horas fossem desperdiçadas em engarrafamentos entre sua casa e o trabalho.
Anos de esforço não renderam sequer as condições necessárias para um modesto financiamento imobiliário, de modo que continuava a se ver obrigado a consumir 39% de sua renda mensal no aluguel de um cubículo barulhento numa área degradada da cidade.
Um dia, um colega de trabalho que vivia um tormento similar quebrou a cabeça em cálculos e garantiu ter identificado 53 combinações que, segundo ele, tinham maior probabilidade de serem sorteadas na loteria. Porém, mesmo juntando trocos e moedas, os dois tinham dinheiro somente para apostar em seis números: 05, 18, 39, 44, 53 e 61.
Era dia 13, mas, na fila da lotérica, José não podia se dar ao luxo de superstições. Estudado, trabalhador e racional, concluiu que precisava tentar. Seria a última trincheira antes de partir para o crime. A lógica não lhe dava outra opção.