sábado, 31 de dezembro de 2011

Todos



até josé merece
um pôr do céu
amarelógico
amarelúcido
amarelento
como um quindim
amarelindo


domingo, 20 de novembro de 2011

desconhecidas*

informações:
Fabiana: 11 9204-4131
Fabricio: 11 9239-2118
ou 2241-8348

confesso que
para mim
até o dia dezesseis de outubro
ela não existia

agora
diariamente cumprimento seu sorriso sereno
revejo detalhes de seu rosto
e de sua camisa branca

lamento ignorar tudo
sei só do fato que infelizmente
arremessou-a ao meu cotidiano

ela está em minha  memória
em minhas pausas
em meus versos
em meus silêncios
até aos domingos

gostaria de sabê-la presente
em um único lugar

não na padaria
não na farmácia
não na biblioteca
nem no ponto de ônibus

dói reconhecer repetidas vezes
que jamais nos vimos

Ellen Ferreira
cinquenta e três anos
foi vista pela última vez por volta das dez horas
perto da estação patriarca do metrô

desapareceu misteriosamente

e desde aquele dia
se tornou o rosto mais conhecido em meu caminho


*Minha homenagem a tantos desaparecidos que são tratados como números, dados estatísticos ou, muitas vezes, nem isso.

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

Lembrança de um dia de finados

estávamos todos sós
eu e as plantas da janela
eu e o cacto na estante
eu e a coleção de pedras e conchas
formada não me lembro em que circunstância

ouvimos a trilha sonora dos motores
ante a paisagem vertical
desta vez nem choveu
tudo parado
e no entanto
vivo

R. B.
02/11/2011

domingo, 3 de abril de 2011

Benedita


Benedita

batuqueira e beata

sempre que pode

aprende um sambinha

que passou no Anhembi



no batente peleja

batendo tapete

passa roupa

paga pouca

pra pena e imposto

trabalho pra burro

e patrão



pendurada no ônibus

espera parada

o passo e o progresso penitente

da São Paulo poluída

populosa populenta



COHAB

Sapopemba Cangaíba

Nhanbiquaras Pari

Anhangabaú Morumbi



Benedita apela pra Bíblia

o esposo, pro copo de pinga

no ponto do shopping

pensa na xepa

no prato de sopa

no próprio diabo

e no preço do pão



lembra do pronunciamento

do presidente

da pregação do pastor...



de deputado e prefeito

só sabe da CPI



o planalto sempre promete

Benedita precisa esperar



sem perder a esportiva

sem perder a esperança

sem perder a estribeira.



Rita Braga, 23/04/2008

Mudança de hábito

Todo dia a mesma coisa... às seis o despertador toca, às seis resmungo na cama até que ele desista. E geralmente por volta das 6h45, pulo assustada por ter mais uma vez perdido a hora. É claro que a pressa diária inclui, banho, escova de dentes, e secar esse bendito cabelo (que muita gente acha que fica bonitinho assim naturalmente). Depois disso saio.
Eu, como todo mundo, por vezes, tomo uma pessoa por relógio. Na cidade isso é comum... pois a gente vê sempre caras familiarmente desconhecidas, passando pelas esquinas nos mesmos horários. Até as portas do metrô, no cotidiano, se organizam com os mesmos sonolentos transeuntes.

Além disso, toda rotina põe pessoas como meros elementos da paisagem. E sem dúvida no meu prédio tem um caso assim. Todo santo dia, ao chamar o elevador, a porta se abre e ele está lá. Um moço careca, magro, de nariz de árabe e um olhar caricato. Não é feio nem bonito. Ele parece um boneco de cera. Nunca o vi piscar. Mesmo quando eu falo bom dia, ele não se move, e não entendo em mim que teimosia me faz repetir esse ritual de educação diariamente.


O elevador tem cerca de um metro quadrado, e como o moço nunca dá um passo para trás, acabo me encostando no espelho que fica no fundo do cubículo. Passo os segundos a observá-lo, sistematicamente, sua nuca, e o seu colarinho, brevemente exposto sob a jaqueta acinzentada. Os 37 segundos do 15º andar ao térreo são sempre preenchidos pelo silêncio incômodo dessa intimidade automatizada. Quando a porta se abre, damos bom dia ao porteiro, à rua, à padaria da esquina.  Ando com a mesma pressa até o trabalho e tudo segue igual.
Pois é... Foi numa terça-feira corrida, daquelas em que peno para a atender à tarefa do professor de arte e do professor literatura. Os dois já me ensinaram que toda Arte é uma esposa ciumenta... Já disseram que não adianta ficar me dividindo, que se de fato quero produzir algo bom, preciso ter um foco e me dedicar a ele. Bem. Eles me ensinaram, mas ainda não aprendi. Por isso mais uma vez saí de casa com duas tarefas marcadas para aquele fim de tarde – e não definidas. O Claudinei exigia que eu voltasse a freqüentar as aulas de desenho no ateliê, enquanto o Gilson, esperava ansiosamente que eu tomasse vergonha na cara e depois de tantas faltas e enrolações, levasse pelo menos uma crônica pronta naquela noite.
Às 7h15, quando entrei no elevador, eu ainda não sabia que meu tema estava ali. Curiosamente, naquela manhã me irritei com o boneco de cera. Entrei sem dizer bom dia e fui para meu cantinho no fundo do elevador. Justamente por ver-se contrariado em meu silêncio, ele se virou! E disse:
– Bom dia?
Não é que eu seja mal educada. Não sou. Mas a culpa é dele mesmo, que desperdiçou minha boa vontade e educação por tanto tempo. Fui seca e disse somente:
– Vire-se de costas. Não quero mais. Limito-me a olhar sua nuca.
O rapaz nem assim piscou. Nunca tinha visto tamanha habilidade em ficar imóvel.
– Vire-se, moço! – insisti irritadíssima, mas nada que eu dissesse surtiria efeito. Ele me encarava de maneira constrangedora, e cuido que demoramos 30 horas para chegar ao térreo. Dali, saí e fui para a vida. Carreguei o dia todo aquela sensação de constrangimento. Cada pessoa que me encarava no trabalho recebia um breve rosnar. Aquilo foi crescendo... aquela raiva tomando forma... E eu nem entendia o que tanto me irritava.
Digamos que eu tenha saído do ritmo, e agora, descompassada de mim, não sabia como voltar. Às 17h eu saí do trabalho e sem me entender resolvi que naquela terça não faltaria à aula de desenho. O professor me recebeu à porta com alegria e surpresa.
– Finalmente vai abrir mão dessa balela de ser escritora, e veio se dedicar à sua arte? – dizia sorrindo enquanto me acolhia – Você tem sorte, logo hoje temos um modelo vivo... já  passamos da metade do tempo, mas já que voltou, somente para agradá-la deixo que você oriente o modelo para a próxima posição.
Quase não contive meu espanto! O vizinho ali...! Nu! Surpreendentemente nu! É claro que numa fração de segundos meu olhar examinou cada milímetro daquele corpo... – diga-se de passagem, “magro” – e foi até com certo prazer que percebi finalmente seus olhos piscarem surpresos ao me encontrar naquela sala. Eram agora olhos mais vulneráveis, quase em súplica...
Também não sei dizer se esses poucos segundos foram curtos ou longos, como aqueles instantes matinais. Só sei que foi com um sorrisinho ácido que eu empunhei meu lápis e pude dizer:
– Muito bem, moço! Vire-se de costas!
Acreditem! Quando fiz o primeiro traço, eu pelo menos já sabia o que queria escrever.


São Paulo, outubro de 2008.
R.B.

Manhã de sol

dorme no sofá
acorda lá
acorda e cai em si
sem dó

dorme no sofá
acorda lá
acorda e ri de si
em sol.



A menina que colecionava problemas


– Ana! – escolheu a mãe.
– Não... Maria! – pediu o pai.
E para que a gente possa começar logo esta história, não vou entrar nos detalhes da escolha do nome daquela criança linda. Ela, que é a menina da história, como toda criança, cresceu.
Ana Maria Mariana colecionava problemas e os carregava consigo por onde quer que ela fosse. Por que ela fazia isso? Esta é uma pergunta que nem mesmo a menina saberia responder. Talvez fosse um costume de família, ou quem sabe ela viu alguém fazer isso na televisão... O fato é que o costume começou há muito tempo. É verdade! Parece que começou com um probleminha de nada no caminho da escola. Estava andando, até feliz, quando tropeçou no primeiro probleminha – tuc!
Ela poderia deixá-lo lá na calçada, se quisesse, mas ela ainda não sabia que tudo era uma simples escolha. Achou apenas que se o problema estava em seu caminho, pronto! era seu! tinha que levá-lo. E como achado não é roubado... lá estava ela com o primeiro exemplar do que viria a ser sua coleção.
– Quem será que deixou esse problema tão bonitinho aqui? Ele parece um grilo pedindo atenção...
O segundo problema não demorou a aparecer. Ela ficou até feliz, porque seu primeiro probleminha não passaria pela dificuldade de ficar sozinho (o que já seria um outro problema...).
– Os dois vão até se entender! – pensou ela, sem saber que um problema sempre traz outro. Quando olhou com atenção para eles, viu que já eram 2, 4, 6, 8... e logo não haveria espaço para mais nada!
Foi nesse tempo que surgiu a ideia de guardá-los num recipiente fechado, na ilusão de que chegando à tampa eles parariam de se multiplicar.
Ana Maria Mariana colocou todos num pote só – e seu pote parecia agora um único problema. Ficou um pouco mais pesado... é verdade. Também um pouco desajeitado no carregar... –, mas como o pote era seu, o problema agora também “era mais seu” do que nunca.
Ela precisou se adaptar a ele. Embrulhou-o em papel bonito para que não parecesse tão problemático assim. Depois, trocou de pote, pois ficou penalizada com o aperto dos grilinhos e colocou até rodinhas para melhor empurrá-lo no caminho.
O pior é que enquanto ela fazia tanto esforço para lidar com eles, vez ou outra ela via pelas ruas pessoas que conseguiam levar grilos muito parecidos com os dela em balões flutuantes. Por mais que pensasse, Ana Maria Mariana não entendia como aquela gente conseguia acomodá-los em suas vidas com tanta leveza.
Um dia, numa tarde bonita – embora quente demais para quem carregava um problema daqueles – aconteceu algo que era o limiar entre o insignificante e a tragédia. Pela calçada, lá da esquina, ela avistou um novo problema! Esse era grande! Estava bem no meio do seu caminho. Foi o primeiro dia em que ousou olhar para o outro lado da rua... Mas como atravessar levando seu pote?
Tentou fingir que não viu o problema, mas parece que ele, de lá mesmo, viu os coleguinhas de dentro do pote acenando e gritando:
– Vem pra cá!
O pote parecia muito mais pesado, pois os grilinhos puxavam a menina em direção à calçada do problemão. Ela tentava resistir, mas com o tempo os problemas pareciam muito mais fortes que ela.
As pessoas viam o sofrimento da coitadinha e não entendiam por que ela não soltava aquele pote. Houve até um ou outro passante que reconheceu no vidro um probleminha dele. Algo que ele havia esquecido há muito tempo nem se sabe onde... e se estava agora no pote da menina, era melhor deixá-lo lá... não é?
E sabe o que aconteceu? Os grilinhos venceram! De repente, Ana Maria Mariana viu que não poderia mais sair daquele lugar – não aguentaria carregar mais o pote, que, afinal, era seu!
Ficou ali, parada, à mercê dos problemas que a seguravam. Ficou pensando “como posso me desfazer da minha coleção? Tenho probleminhas pequenos, médios e grandes; achados, emprestados, comprados; problemas novos, antigos... problemas que convivem comigo há tanto, tanto, tanto tempo que até parecem parte de mim! Como posso seguir deixando parte de mim para trás?” e suspirou:
– Se pelo menos eu fosse uma lagartixa!
Foi aí que Mariana percebeu uma soluçãozinha tímida acenando do chão. Era uma solução com um jeitinho agradável e convidativo.
Você sabe: as soluções, em geral, são de tamanhos muito menores. É preciso estar muito atento para que não sejam destruídas sem que a gente perceba.
Além disso, soluções são rápidas. Às vezes a gente olha e estão lá. Dali a pouco, muda o sol, o vento, a hora e já não estão mais.
Mariana achou que, como estava ali mesmo, poderia colecionar soluções. Pegou a primeira que viu, mas largou-a num pulo, assustadíssima, porque viu um problema novo grudado àquela solução. Então, decidiu:
– Chega de problemas. Agora vou colecionar soluções! Mas somente soluções puras, que não tragam outros problemas. Enquanto isso, eu continuo com meu pote.
O que Mariana também não sabia é como era difícil encontrar esse tipo de solução.
Tenho até a impressão de que estava tão viciada em problemas que quem chamava a atenção dela eram somente os probleminhas grudados às soluções. Afinal, as soluções puras não são tão ousadas. Ficam quietinhas, escondidas nos espaços onde a gente não costuma procurar nada. Lá elas podem ficar à vontade, sem alarde, sem complicação. Às vezes elas flutuam invisíveis no ar e é preciso muita luz e muita sensibilidade para percebê-las. Uma vontade de enxergar como aquela de quando percebemos a poeira flutuante no raio de luz que entra pela janela.
As soluções ficam à espera de gente aberta para vê-las e com coragem suficiente para optar por elas. É, porque para optar por uma solução é preciso coragem!
Nossa menina ficou ali, parada por muito tempo. Mariana acreditava ter problemas muito especiais e muito diferentes dos outros. Por isso, acreditava também que seus problemas eram muito, muito, muito mais pesados! Sabemos que ter problemas mais pesados era uma vantagem tola, mas ela preferia valorizar o peso e a intensidade a reconhecer o tamanho de sua tolice.
Aconteceu o que sempre é possível, mas ninguém nunca espera. Cansada, e já sem expectativas, ela abriu o pote e resolveu desfazer-se da sua coleção e dessa condição tão inerte diante de tudo.
Quando abriu o seu pote teve uma surpresa e tanto. Na verdade seus problemas estavam há tanto tempo tão misturados que ela já não sabia mais o quanto eram separados e diferentes entre si. Alguns, que eram pequenos e leves, apenas pareciam grandes porque o vidro distorcia a imagem. Sozinhos, de repente, voaram para muito longe. Tão longe que a menina perdeu–os de vista – eram lagartas transmutadas em borboletas.
Mariana percebeu que muitos daqueles problemas não eram seus. Viu que outros, tão velhinhos e ranzinzas, mal conseguiam chegar à borda do pote. E alguns, também antigos e frágeis, quando trazidos à primeira brisa, desmanchavam-se no ar... 
Alguns problemas aterrorizantes e ágeis saíram do pote gritando ameaças terríveis até que uma ou outra solução charmosa os atraísse.
...
O pote continuava ali, a desmontar-se diante dos olhos de Mariana atônita. Ela percebeu, então, que seus esforços em mantê-lo fechado por todo esse tempo era tão intenso quanto seu desejo secreto de livrar-se dele. E a hora chegou. Via com espanto os problemas procurarem livremente seus donos, seus assentamentos ou suas soluções.
Ah... Mas o mais espantoso eu ainda não contei: olhando com tranquilidade e atenção, Mariana entendeu que as soluções escondidas no ar ajudavam as pessoas a sustentar levemente aqueles simples e misteriosos balões.
Os problemas voaram, dormiram, sumiram, morreram, partiram, se desmancharam, se diluíram, fugiram, rugiram... até que restassem no pote somente aqueles que são inevitáveis e com os quais  Mariana, como qualquer pessoa, aprenderia a lidar, sem pressa e sem  aflição.
Mariana pôde seguir o caminho incerto de cada um de seus dias. Continuou indo aos mesmos lugares e andando pelas ruas da cidade normalmente. Até que um dia, como já era de se esperar, ela encontrou um novo problema. Mas, agora, você já pode imaginar o que ela fez...

São Paulo, 02 de setembro de 2007.
R. B.

Ilustração: Jayson Miranda, 2009.

Alívio


Agora reconheço. Eu o vi. Previ.
Ontem à noite, enquanto você dormia, eu vi quando ele saiu. Saiu carregando sua fortuna miserável. Levava no bolso todo o pagamento. Todo o muito pouco que lhe deram por passar os dias em constante serviço-servidão.
Somente agora alguém comentou que tudo o que fez foi porque deu a si mesmo um dia de folga – de outro modo, não encontraria tempo de se expor ao acaso. Talvez... Sei comigo, apenas, que, ontem, num desespero de quem olha para o chão, ele procurou companhia.
Pegou tudo o que tinha de seu e num surto de solidão congênita chegou ao bar. Aparentemente, chegou sem se notar na rua, que no fim pode acontecer em qualquer rua de São Paulo. Vi que buscava no bar, pelo menos, uma pseudoconvivência. Percebi também aquela pedra deslocada do calçamento original, logo à entrada. Estava à espera de um tropeço que daria sentido ao fato de ela permanecer ali.
Ele simulou um sorriso, mas vi seu vazio camuflado na euforia de quem pede uma dose de veneno ao garçom. Olhou as notas mal arrumadas com um cansaço de quem decide revirar dores guardadas. Vi quando olhou ao redor. Quando procurou o espelho atrás do balcão. Eu vi o exato momento em que a bebida mais cara amargou-lhe ainda mais o olhar.
Não falou. Até então, sequer suspirou. E, por um momento, ouso crer que não pensou. Inexistiu esbanjando sua experiente capacidade de ser nada no mundo. Era alguém que, em silêncio, ouve a música escolhida por outro. Sua escolha limita-se à luz e talvez uma mesa ao fundo do bar – sugestão do garçom.
Vi depois seu suspiro discreto diante do copo. Aquele instante no qual seu olhar levantou vôo. Planou. Quando o barulho se sobrepôs à música, tive até a impressão de que sua alma não estava mais lá. Escutava pedaços de conversas, risos, cheiros, fumaças, sinais. Percebia o andar apressado de garçons que em horas mais calmas poderiam ser até um amigo – o amigo.
Reconheceu rostos, esqueceu nomes, indiferente e atento a tudo ao redor. Encontrava no tempo presente pessoas das quais amaldiçoadamente se lembraria – pessoas que jamais poderia reencontrar depois dali.
Ordenou outra dose, ofereceu o dinheiro ao barman que o tomando por louco, recusou.
Eu sei do peso ébrio sobre os seus olhos. Reparei quando levou a mão à testa, quando represou, nos olhos fechados, a desonra do choro. E quando os abriu lentamente, com ouvidos sensíveis em efeito do álcool, escutando um soluço que não era seu. Sua solidão seguia seguramente até aquele tumulto tranqüilo em que percebeu um casal.
Não. Não foram os carinhos de pombo que o fizeram sentir seu silêncio no mundo. Eram reais – sem romantismo adoçado, nem idealizações. Eram dois, cada-um-cada-um, numa briga que já cruzava o limite da simples discussão.
Também não foi pelo embate que seu coração começou a bater. Foi porque a moça agredida e agressiva lançou-lhe na vida vazia o fato de olhá-lo indiscretamente.
Soube: foi visto! Viu cores, ouviu as nuances dos sons. Em nome de tudo o que sentiu naquele segundo, quis intervir. Alheio aos avisos que vinham de um outro, moveu-se... Daí, é o que se sabe:  o gesto, o golpe, o grito. A lâmina intrusa na carne. A fisgada, a queda, o corte, o canto...
Eu vi quando arrastaram o corpo teimoso até aquela calçada, junto à pedra. Todo o mundo acompanhou o desfecho em omissão respeitosa. E ele permaneceu ali, parado, até que fechassem a porta.
Sentia no bolso o volume das notas, os goles, os copos que nem chegou a beber. Pesava-lhe o cotidiano cansado, as não-folgas da vida, irreversíveis escolhas de tudo o que não fez.
Era quase o pior do fim, quando um insólito e imundo Papai Noel da 25 de Março, cheirando a vinho barato, parou para procurar ali uma esperança para a noite de Natal. Revirou o corpo agonizante com descaso e nojo, e, cuspindo no chão, arrancou-lhe o dinheiro e carteira.
Entre as nuvens da barba sintética e o lindo inferno vermelho do casaco acetinado, expirou:
– Que homem bom!
Na manhã seguinte, diante de sua retina estática, muitos olhares passantes tardavam. Eu soube de tudo, o tempo todo, mas tardei em reconhecer-me também. Sei agora, que era este o rosto que eu encontrava no espelho, apressadamente, todos esses anos pela manhã.
Viam-me, por fim. Somente hoje sei que me vi. Porém agora, de volta à essência do que sempre fui, já não sou mais nada.

São Paulo, 16 de novembro de 2007.
R.B.



Começou assim








Clarice! Clarice! Clarice! – gritava uma garotinha em desespero feliz.
...
Somente mais tarde percebi que gritava “Larissa”... mas aí, já era tarde demais.