domingo, 3 de abril de 2011

A menina que colecionava problemas


– Ana! – escolheu a mãe.
– Não... Maria! – pediu o pai.
E para que a gente possa começar logo esta história, não vou entrar nos detalhes da escolha do nome daquela criança linda. Ela, que é a menina da história, como toda criança, cresceu.
Ana Maria Mariana colecionava problemas e os carregava consigo por onde quer que ela fosse. Por que ela fazia isso? Esta é uma pergunta que nem mesmo a menina saberia responder. Talvez fosse um costume de família, ou quem sabe ela viu alguém fazer isso na televisão... O fato é que o costume começou há muito tempo. É verdade! Parece que começou com um probleminha de nada no caminho da escola. Estava andando, até feliz, quando tropeçou no primeiro probleminha – tuc!
Ela poderia deixá-lo lá na calçada, se quisesse, mas ela ainda não sabia que tudo era uma simples escolha. Achou apenas que se o problema estava em seu caminho, pronto! era seu! tinha que levá-lo. E como achado não é roubado... lá estava ela com o primeiro exemplar do que viria a ser sua coleção.
– Quem será que deixou esse problema tão bonitinho aqui? Ele parece um grilo pedindo atenção...
O segundo problema não demorou a aparecer. Ela ficou até feliz, porque seu primeiro probleminha não passaria pela dificuldade de ficar sozinho (o que já seria um outro problema...).
– Os dois vão até se entender! – pensou ela, sem saber que um problema sempre traz outro. Quando olhou com atenção para eles, viu que já eram 2, 4, 6, 8... e logo não haveria espaço para mais nada!
Foi nesse tempo que surgiu a ideia de guardá-los num recipiente fechado, na ilusão de que chegando à tampa eles parariam de se multiplicar.
Ana Maria Mariana colocou todos num pote só – e seu pote parecia agora um único problema. Ficou um pouco mais pesado... é verdade. Também um pouco desajeitado no carregar... –, mas como o pote era seu, o problema agora também “era mais seu” do que nunca.
Ela precisou se adaptar a ele. Embrulhou-o em papel bonito para que não parecesse tão problemático assim. Depois, trocou de pote, pois ficou penalizada com o aperto dos grilinhos e colocou até rodinhas para melhor empurrá-lo no caminho.
O pior é que enquanto ela fazia tanto esforço para lidar com eles, vez ou outra ela via pelas ruas pessoas que conseguiam levar grilos muito parecidos com os dela em balões flutuantes. Por mais que pensasse, Ana Maria Mariana não entendia como aquela gente conseguia acomodá-los em suas vidas com tanta leveza.
Um dia, numa tarde bonita – embora quente demais para quem carregava um problema daqueles – aconteceu algo que era o limiar entre o insignificante e a tragédia. Pela calçada, lá da esquina, ela avistou um novo problema! Esse era grande! Estava bem no meio do seu caminho. Foi o primeiro dia em que ousou olhar para o outro lado da rua... Mas como atravessar levando seu pote?
Tentou fingir que não viu o problema, mas parece que ele, de lá mesmo, viu os coleguinhas de dentro do pote acenando e gritando:
– Vem pra cá!
O pote parecia muito mais pesado, pois os grilinhos puxavam a menina em direção à calçada do problemão. Ela tentava resistir, mas com o tempo os problemas pareciam muito mais fortes que ela.
As pessoas viam o sofrimento da coitadinha e não entendiam por que ela não soltava aquele pote. Houve até um ou outro passante que reconheceu no vidro um probleminha dele. Algo que ele havia esquecido há muito tempo nem se sabe onde... e se estava agora no pote da menina, era melhor deixá-lo lá... não é?
E sabe o que aconteceu? Os grilinhos venceram! De repente, Ana Maria Mariana viu que não poderia mais sair daquele lugar – não aguentaria carregar mais o pote, que, afinal, era seu!
Ficou ali, parada, à mercê dos problemas que a seguravam. Ficou pensando “como posso me desfazer da minha coleção? Tenho probleminhas pequenos, médios e grandes; achados, emprestados, comprados; problemas novos, antigos... problemas que convivem comigo há tanto, tanto, tanto tempo que até parecem parte de mim! Como posso seguir deixando parte de mim para trás?” e suspirou:
– Se pelo menos eu fosse uma lagartixa!
Foi aí que Mariana percebeu uma soluçãozinha tímida acenando do chão. Era uma solução com um jeitinho agradável e convidativo.
Você sabe: as soluções, em geral, são de tamanhos muito menores. É preciso estar muito atento para que não sejam destruídas sem que a gente perceba.
Além disso, soluções são rápidas. Às vezes a gente olha e estão lá. Dali a pouco, muda o sol, o vento, a hora e já não estão mais.
Mariana achou que, como estava ali mesmo, poderia colecionar soluções. Pegou a primeira que viu, mas largou-a num pulo, assustadíssima, porque viu um problema novo grudado àquela solução. Então, decidiu:
– Chega de problemas. Agora vou colecionar soluções! Mas somente soluções puras, que não tragam outros problemas. Enquanto isso, eu continuo com meu pote.
O que Mariana também não sabia é como era difícil encontrar esse tipo de solução.
Tenho até a impressão de que estava tão viciada em problemas que quem chamava a atenção dela eram somente os probleminhas grudados às soluções. Afinal, as soluções puras não são tão ousadas. Ficam quietinhas, escondidas nos espaços onde a gente não costuma procurar nada. Lá elas podem ficar à vontade, sem alarde, sem complicação. Às vezes elas flutuam invisíveis no ar e é preciso muita luz e muita sensibilidade para percebê-las. Uma vontade de enxergar como aquela de quando percebemos a poeira flutuante no raio de luz que entra pela janela.
As soluções ficam à espera de gente aberta para vê-las e com coragem suficiente para optar por elas. É, porque para optar por uma solução é preciso coragem!
Nossa menina ficou ali, parada por muito tempo. Mariana acreditava ter problemas muito especiais e muito diferentes dos outros. Por isso, acreditava também que seus problemas eram muito, muito, muito mais pesados! Sabemos que ter problemas mais pesados era uma vantagem tola, mas ela preferia valorizar o peso e a intensidade a reconhecer o tamanho de sua tolice.
Aconteceu o que sempre é possível, mas ninguém nunca espera. Cansada, e já sem expectativas, ela abriu o pote e resolveu desfazer-se da sua coleção e dessa condição tão inerte diante de tudo.
Quando abriu o seu pote teve uma surpresa e tanto. Na verdade seus problemas estavam há tanto tempo tão misturados que ela já não sabia mais o quanto eram separados e diferentes entre si. Alguns, que eram pequenos e leves, apenas pareciam grandes porque o vidro distorcia a imagem. Sozinhos, de repente, voaram para muito longe. Tão longe que a menina perdeu–os de vista – eram lagartas transmutadas em borboletas.
Mariana percebeu que muitos daqueles problemas não eram seus. Viu que outros, tão velhinhos e ranzinzas, mal conseguiam chegar à borda do pote. E alguns, também antigos e frágeis, quando trazidos à primeira brisa, desmanchavam-se no ar... 
Alguns problemas aterrorizantes e ágeis saíram do pote gritando ameaças terríveis até que uma ou outra solução charmosa os atraísse.
...
O pote continuava ali, a desmontar-se diante dos olhos de Mariana atônita. Ela percebeu, então, que seus esforços em mantê-lo fechado por todo esse tempo era tão intenso quanto seu desejo secreto de livrar-se dele. E a hora chegou. Via com espanto os problemas procurarem livremente seus donos, seus assentamentos ou suas soluções.
Ah... Mas o mais espantoso eu ainda não contei: olhando com tranquilidade e atenção, Mariana entendeu que as soluções escondidas no ar ajudavam as pessoas a sustentar levemente aqueles simples e misteriosos balões.
Os problemas voaram, dormiram, sumiram, morreram, partiram, se desmancharam, se diluíram, fugiram, rugiram... até que restassem no pote somente aqueles que são inevitáveis e com os quais  Mariana, como qualquer pessoa, aprenderia a lidar, sem pressa e sem  aflição.
Mariana pôde seguir o caminho incerto de cada um de seus dias. Continuou indo aos mesmos lugares e andando pelas ruas da cidade normalmente. Até que um dia, como já era de se esperar, ela encontrou um novo problema. Mas, agora, você já pode imaginar o que ela fez...

São Paulo, 02 de setembro de 2007.
R. B.

Ilustração: Jayson Miranda, 2009.

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