segunda-feira, 29 de abril de 2013

Valsinha


Ela no sofá, ele no portão.
Ele entra, vai até a cozinha, ela se levanta e vai varrer o quintal.
O silêncio continua há anos, desde que o cão morreu.  O abacateiro já não existe. Nem a figueira, nem o jardim, nem o pé de romã. Restam sombras e umidades nas paredes. Apenas algumas hortênsias teimam em florescer escandalosamente em frente à porta nos dias incertos de abril.
Ninguém esperava, mas aconteceu...  entre o barulho  da panela de pressão e o olhar fixo  em um não lugar, o tempo passou. Quando voltou ao mundo, o susto: lá estava ele, parado, no mesmo cômodo, com uma flor na mão. A camisa puída, rasgada e suja, dava-lhe o ar de alguém que foi abandonado.
Desligou o fogão. Terminou de secar as mãos no pano de prato, mas o olhar não se sustentou em nenhum canto da casa. Havia desaprendido a ser notada.
Passos vagarosos, pesados de tempo, vieram em sua direção. A mão grossa, rugosa, ajeitou a flor atrás da sua orelha sem dizer palavra. Havia música e mistério entre os corações cansados, algo que esboçou uma dança vigorosa e lenta entre um cômodo e outro.
Quanto tempo? Uma eternidade? Talvez duas...
Depois as mãos se soltaram, ele foi para janela e ela colheu hortênsias para pôr num vaso. 

R.B.

sexta-feira, 19 de abril de 2013

Evidências



A  Marcos Suguiura,
(Porque há momentos na vida em que não há saída: é irresistível revirar a gaveta...)



Não me faltam conflitos nas noites de terça, principalmente, por estas noites premeditarem meu encontro com o Marcos. Algo me diz que todos os grilos são primos nas confusões de uma terça. Acresce uma briga com o chefe, a mordida do imposto e o desgosto de um “ex”.  Cansaço, memória, trabalho... Por causa do ritmo atordoado desde o final de semana, geralmente chego exausta e mal tenho a lembrança de como abri a porta ou de como acendi as luzes da sala. Talvez eu me lembre um pouco da água do banho... A esponja e a espuma com cheiro do sabonete novo. Tudo é pressa de terminar o dia... – fechar os olhos e estar na minha cama, quieta. Por isso, um dia desses, mal sequei os cabelos. Apenas apaguei tudo e deitei.
Quem não conhece o turbilhão ao travesseiro depois de um dia cheio e confuso assim? A gente quase levita – ou afunda! – na cama querendo morrer de dormir. Pois é... mas eu não durmo. Tenho uma insônia monstruosa que me obriga sempre a tomar um comprimidinho azul antes de apagar a luz. Aconteceu então que, nesta noite, um tempo depois da minha dose de céu e exatamente no instante em que meus olhos quase se renderiam ao sono, ouvi um silêncio estranho. Um silêncio distinto daquele no qual eu e minhas plantinhas encontramos repouso. Havia um silêncio de um outro – e foi um susto, ouvi-lo pensar.
Abri os olhos e vi o quarto em escuro azulado. É claro que meu medo infantil vigiava a porta do guarda-roupa. Fechada. Estou louca? Não. Não há nada ali... porém lá se foi meu descanso. Assim, tornei a pensar no Marcos e na sessão de amanhã. “Mais uma vez ele vai ouvir minhas lamúrias e mais uma vez vou pensar que nem eu mesma tenho tanta paciência comigo”. De qualquer forma, chegar à terapia com esse papo de “senti que tinha alguém no meu quarto” já será demais.  Pensei comigo: “pára com isso, Rita!”.
Mas que susto! Ouvi de novo! Dessa vez, um quase suspiro...  alguém respira embaixo da minha cama. Eu sei.
Apenas para conferir – e por medo! – contenho meu próprio ar. Agora é certeza... Há alguém aqui. Que droga! Tenho muito medo – medo físico em suor frio. Até meu coração confuso entre o remédio e o susto, tropeça cambaleante dentro de mim.  Devagar tomo o lençol e cubro a cabeça como fazia quando criança. O grande problema é que hoje já sei – eu não o vejo, mas o outro pode me ver.
Sinto inclusive seu susto. Meu medo denunciou que o percebo.
Em pedra mal respiro. O certo é que de novo quase espero morrer.
Um barulhinho, um estalo, estronda nosso mal estar. Quem estaria ali...? A hipótese é tão absurda que chego a renegar a idéia de um intruso. Como entraria?  Argumento comigo... “deve ser um bichinho”... Só uma barata vinda com o cheiro da chuva... Até um rato – com todo o medo e nojo do mundo – eu suporto pensar... mas é grande demais a presença que escuto através do colchão. Percebo um ajeitar-se lentamente. Um estralinho de articulações. Afinal, a cama é baixa... e não sei como essa pessoa conseguiu se encaixar.
Será um ladrão? Pela fresta do lençol tento espiar minha escrivaninha... o computador esta lá. A carteira parece no lugar... a gaveta onde guardo meus documentos está impedida por uma pilha de livros sobre a cadeira e, portanto, parece intacta. Sim, meus olhos pesam, pesam apesar da tensão... Mas estão acostumados ao escuro.    
 Não consigo sequer me mexer. Não tenho coragem nem força suficiente para falar. Até meu pensamento tem medo de sussurrar e ser ouvido. Nunca me vi tão impotente. Digamos que até então o caso me amedrontava, mas era uma simples hipótese delirante. Eu afirmava e duvidava de minha própria percepção. De fato eu temia uma violência, um susto, um ataque... mas também ignorava em que tipo de vulnerabilidade eu estava exposta ali. Foi quando me lembrei do caderno - uma espécie de diário que escrevo toda noite e deixo no chão,  ao lado da cama!
Nessa hora sim, um desespero. A necessidade intensa de esticar o braço e tomá-lo de volta. Rapidamente. Se meu corpo dopado não se mexia, minha alma agitada e sonolenta sabia estar escrita naquele caderno.
O delírio do azul me rendia... cheguei a ouvir na minha mente uma voz conhecida... O Marcos dizia “calma. Tudo vai ficar bem.” Incrível como até em sonho a presença desse cara me conforta. Depois de tudo o que passei, ele é o único em quem confio. Vocês não sabem como ele é  sensível! Acreditam que toda quarta pela manhã ele quase adivinha o que se passa em mim?! Não sei como ele faz isso. Parece que lê minha alma... Não sei...
Só sei que naquela noite de terça, apesar de uma luz estranha sob a cama... um brilho que não parecia vir da janela... apesar de tudo, com meu remedinho, eu dormi.

São Paulo, 09 de setembro de 2008.
R. B.