domingo, 3 de abril de 2011

Mudança de hábito

Todo dia a mesma coisa... às seis o despertador toca, às seis resmungo na cama até que ele desista. E geralmente por volta das 6h45, pulo assustada por ter mais uma vez perdido a hora. É claro que a pressa diária inclui, banho, escova de dentes, e secar esse bendito cabelo (que muita gente acha que fica bonitinho assim naturalmente). Depois disso saio.
Eu, como todo mundo, por vezes, tomo uma pessoa por relógio. Na cidade isso é comum... pois a gente vê sempre caras familiarmente desconhecidas, passando pelas esquinas nos mesmos horários. Até as portas do metrô, no cotidiano, se organizam com os mesmos sonolentos transeuntes.

Além disso, toda rotina põe pessoas como meros elementos da paisagem. E sem dúvida no meu prédio tem um caso assim. Todo santo dia, ao chamar o elevador, a porta se abre e ele está lá. Um moço careca, magro, de nariz de árabe e um olhar caricato. Não é feio nem bonito. Ele parece um boneco de cera. Nunca o vi piscar. Mesmo quando eu falo bom dia, ele não se move, e não entendo em mim que teimosia me faz repetir esse ritual de educação diariamente.


O elevador tem cerca de um metro quadrado, e como o moço nunca dá um passo para trás, acabo me encostando no espelho que fica no fundo do cubículo. Passo os segundos a observá-lo, sistematicamente, sua nuca, e o seu colarinho, brevemente exposto sob a jaqueta acinzentada. Os 37 segundos do 15º andar ao térreo são sempre preenchidos pelo silêncio incômodo dessa intimidade automatizada. Quando a porta se abre, damos bom dia ao porteiro, à rua, à padaria da esquina.  Ando com a mesma pressa até o trabalho e tudo segue igual.
Pois é... Foi numa terça-feira corrida, daquelas em que peno para a atender à tarefa do professor de arte e do professor literatura. Os dois já me ensinaram que toda Arte é uma esposa ciumenta... Já disseram que não adianta ficar me dividindo, que se de fato quero produzir algo bom, preciso ter um foco e me dedicar a ele. Bem. Eles me ensinaram, mas ainda não aprendi. Por isso mais uma vez saí de casa com duas tarefas marcadas para aquele fim de tarde – e não definidas. O Claudinei exigia que eu voltasse a freqüentar as aulas de desenho no ateliê, enquanto o Gilson, esperava ansiosamente que eu tomasse vergonha na cara e depois de tantas faltas e enrolações, levasse pelo menos uma crônica pronta naquela noite.
Às 7h15, quando entrei no elevador, eu ainda não sabia que meu tema estava ali. Curiosamente, naquela manhã me irritei com o boneco de cera. Entrei sem dizer bom dia e fui para meu cantinho no fundo do elevador. Justamente por ver-se contrariado em meu silêncio, ele se virou! E disse:
– Bom dia?
Não é que eu seja mal educada. Não sou. Mas a culpa é dele mesmo, que desperdiçou minha boa vontade e educação por tanto tempo. Fui seca e disse somente:
– Vire-se de costas. Não quero mais. Limito-me a olhar sua nuca.
O rapaz nem assim piscou. Nunca tinha visto tamanha habilidade em ficar imóvel.
– Vire-se, moço! – insisti irritadíssima, mas nada que eu dissesse surtiria efeito. Ele me encarava de maneira constrangedora, e cuido que demoramos 30 horas para chegar ao térreo. Dali, saí e fui para a vida. Carreguei o dia todo aquela sensação de constrangimento. Cada pessoa que me encarava no trabalho recebia um breve rosnar. Aquilo foi crescendo... aquela raiva tomando forma... E eu nem entendia o que tanto me irritava.
Digamos que eu tenha saído do ritmo, e agora, descompassada de mim, não sabia como voltar. Às 17h eu saí do trabalho e sem me entender resolvi que naquela terça não faltaria à aula de desenho. O professor me recebeu à porta com alegria e surpresa.
– Finalmente vai abrir mão dessa balela de ser escritora, e veio se dedicar à sua arte? – dizia sorrindo enquanto me acolhia – Você tem sorte, logo hoje temos um modelo vivo... já  passamos da metade do tempo, mas já que voltou, somente para agradá-la deixo que você oriente o modelo para a próxima posição.
Quase não contive meu espanto! O vizinho ali...! Nu! Surpreendentemente nu! É claro que numa fração de segundos meu olhar examinou cada milímetro daquele corpo... – diga-se de passagem, “magro” – e foi até com certo prazer que percebi finalmente seus olhos piscarem surpresos ao me encontrar naquela sala. Eram agora olhos mais vulneráveis, quase em súplica...
Também não sei dizer se esses poucos segundos foram curtos ou longos, como aqueles instantes matinais. Só sei que foi com um sorrisinho ácido que eu empunhei meu lápis e pude dizer:
– Muito bem, moço! Vire-se de costas!
Acreditem! Quando fiz o primeiro traço, eu pelo menos já sabia o que queria escrever.


São Paulo, outubro de 2008.
R.B.

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