domingo, 3 de abril de 2011

Alívio


Agora reconheço. Eu o vi. Previ.
Ontem à noite, enquanto você dormia, eu vi quando ele saiu. Saiu carregando sua fortuna miserável. Levava no bolso todo o pagamento. Todo o muito pouco que lhe deram por passar os dias em constante serviço-servidão.
Somente agora alguém comentou que tudo o que fez foi porque deu a si mesmo um dia de folga – de outro modo, não encontraria tempo de se expor ao acaso. Talvez... Sei comigo, apenas, que, ontem, num desespero de quem olha para o chão, ele procurou companhia.
Pegou tudo o que tinha de seu e num surto de solidão congênita chegou ao bar. Aparentemente, chegou sem se notar na rua, que no fim pode acontecer em qualquer rua de São Paulo. Vi que buscava no bar, pelo menos, uma pseudoconvivência. Percebi também aquela pedra deslocada do calçamento original, logo à entrada. Estava à espera de um tropeço que daria sentido ao fato de ela permanecer ali.
Ele simulou um sorriso, mas vi seu vazio camuflado na euforia de quem pede uma dose de veneno ao garçom. Olhou as notas mal arrumadas com um cansaço de quem decide revirar dores guardadas. Vi quando olhou ao redor. Quando procurou o espelho atrás do balcão. Eu vi o exato momento em que a bebida mais cara amargou-lhe ainda mais o olhar.
Não falou. Até então, sequer suspirou. E, por um momento, ouso crer que não pensou. Inexistiu esbanjando sua experiente capacidade de ser nada no mundo. Era alguém que, em silêncio, ouve a música escolhida por outro. Sua escolha limita-se à luz e talvez uma mesa ao fundo do bar – sugestão do garçom.
Vi depois seu suspiro discreto diante do copo. Aquele instante no qual seu olhar levantou vôo. Planou. Quando o barulho se sobrepôs à música, tive até a impressão de que sua alma não estava mais lá. Escutava pedaços de conversas, risos, cheiros, fumaças, sinais. Percebia o andar apressado de garçons que em horas mais calmas poderiam ser até um amigo – o amigo.
Reconheceu rostos, esqueceu nomes, indiferente e atento a tudo ao redor. Encontrava no tempo presente pessoas das quais amaldiçoadamente se lembraria – pessoas que jamais poderia reencontrar depois dali.
Ordenou outra dose, ofereceu o dinheiro ao barman que o tomando por louco, recusou.
Eu sei do peso ébrio sobre os seus olhos. Reparei quando levou a mão à testa, quando represou, nos olhos fechados, a desonra do choro. E quando os abriu lentamente, com ouvidos sensíveis em efeito do álcool, escutando um soluço que não era seu. Sua solidão seguia seguramente até aquele tumulto tranqüilo em que percebeu um casal.
Não. Não foram os carinhos de pombo que o fizeram sentir seu silêncio no mundo. Eram reais – sem romantismo adoçado, nem idealizações. Eram dois, cada-um-cada-um, numa briga que já cruzava o limite da simples discussão.
Também não foi pelo embate que seu coração começou a bater. Foi porque a moça agredida e agressiva lançou-lhe na vida vazia o fato de olhá-lo indiscretamente.
Soube: foi visto! Viu cores, ouviu as nuances dos sons. Em nome de tudo o que sentiu naquele segundo, quis intervir. Alheio aos avisos que vinham de um outro, moveu-se... Daí, é o que se sabe:  o gesto, o golpe, o grito. A lâmina intrusa na carne. A fisgada, a queda, o corte, o canto...
Eu vi quando arrastaram o corpo teimoso até aquela calçada, junto à pedra. Todo o mundo acompanhou o desfecho em omissão respeitosa. E ele permaneceu ali, parado, até que fechassem a porta.
Sentia no bolso o volume das notas, os goles, os copos que nem chegou a beber. Pesava-lhe o cotidiano cansado, as não-folgas da vida, irreversíveis escolhas de tudo o que não fez.
Era quase o pior do fim, quando um insólito e imundo Papai Noel da 25 de Março, cheirando a vinho barato, parou para procurar ali uma esperança para a noite de Natal. Revirou o corpo agonizante com descaso e nojo, e, cuspindo no chão, arrancou-lhe o dinheiro e carteira.
Entre as nuvens da barba sintética e o lindo inferno vermelho do casaco acetinado, expirou:
– Que homem bom!
Na manhã seguinte, diante de sua retina estática, muitos olhares passantes tardavam. Eu soube de tudo, o tempo todo, mas tardei em reconhecer-me também. Sei agora, que era este o rosto que eu encontrava no espelho, apressadamente, todos esses anos pela manhã.
Viam-me, por fim. Somente hoje sei que me vi. Porém agora, de volta à essência do que sempre fui, já não sou mais nada.

São Paulo, 16 de novembro de 2007.
R.B.



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